Enfim, uma luz no fim do túnel. A Associação Nacional dos Editores de Livros propôs no Supremo Tribunal Federal uma ação buscando o reconhecimento da inconstitucionalidade da exigência, estabelecida em nosso Código Civil, de autorização dos biografados (ou de seus parentes, no caso de pessoas falecidas), para a publicação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais.
Questionou-se uma exigência legal absurda e antidemocrática que, ao instituir uma verdadeira censura privada sobre manifestações artísticas, atingiu não apenas a liberdade de expressão dos autores e editores, como também o direito de acesso à informação e à cultura de toda a cidadania. Por força desta restrição legal, várias obras já foram proibidas ou retiradas de circulação pelo Poder Judiciário, como as biografias de Roberto Carlos e de Guimarães Rosa.
Esta grave limitação à liberdade de expressão gera efeitos perniciosos sobre a esfera pública. Além da censura às obras já elaboradas, outras tantas deixam de ser produzidas, pois muitos artistas e historiadores, por motivos compreensíveis, preferem não se sujeitar aos caprichos dos biografados ou de seus familiares.
Ademais, não são incomuns as exigências de pagamento de vultosas quantias como condição para a concessão de licenças para publicação. Outra decorrência do regime legal em vigor é que as biografias publicadas adotam quase sempre um tom elogioso, omitindo ou edulcorando os episódios mais constrangedores da vida do indivíduo retratado. Os biógrafos são muitas vezes forçados a "negociar" os seus textos com os protagonistas das suas obras, tendo que suprimir ou modificar certos trechos dos seus trabalhos, sob pena de se verem impedidos de publicá-los. Com tudo isso, perdem não apenas os artistas e seus veículos, mas, sobretudo, a sociedade e a cultura brasileiras, pela asfixia de um dos mais importantes gêneros literários e pela privação de acesso do público à informação relevante.
Este regime legal é francamente incompatível com a Constituição Federal, que garantiu reforçadamente a liberdade de expressão e o direito à informação, banindo toda e qualquer forma de censura. É verdade que a Constituição também protegeu direitos da personalidade, como a honra e a intimidade. Porém, não se pode atribuir prioridade absoluta a estes direitos, em detrimento daquelas liberdades públicas, tão vitais para a vida democrática. Até porque as pessoas biografadas são, quase invariavelmente, figuras públicas: personagens históricos, políticos, artistas etc. A proteção dos direitos da personalidade de figuras públicas é sempre mais estreita quando colide com a liberdade de expressão. Este é um critério adotado pela jurisprudência do STF e de quase todos os tribunais constitucionais de países democráticos. Na medida em que a trajetória de vida destes indivíduos se confunde com a história coletiva, a eles não pode ser concedido o direito de veto sobre o acesso do público a informações que são do legítimo interesse da sociedade.
Isso não significa que os autores e editores de biografias sejam imunes à responsabilização, no caso de abusos. A divulgação dolosa de fatos inverídicos pode justificar não só a responsabilização civil pelos danos morais e materiais causados à vítima, como até mesmo a aplicação das sanções penais aos culpados, pela prática de crimes contra a honra. O que não pode haver, numa democracia, é a institucionalização da censura prévia privada a obras artísticas e históricas.
O Supremo Tribunal Federal tem se destacado na proteção da liberdade de expressão. Dentre outras importantes decisões, a Corte reconheceu a invalidade da Lei de Imprensa da ditadura militar, assegurou o direito ao humor no período eleitoral e protegeu a liberdade de manifestação dos defensores da legalização da maconha.
Por isso, os que se importam com as liberdades públicas, com as artes e com a democracia no país têm agora uma ótima razão para ficarem esperançosos.
Artigo originalmente publicado na edição desta sexta-feira, 3 de agosto de 2012, do jornal O Globo.
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